terça-feira, 13 de setembro de 2011

Otávio. Perto do Coração Selvagem. C. Lispector.

Então começou a pensar que, na verdade rezara. Ela não. Alguma coisa mais do que ela, de que já não tinha consciência, rezara. Mas não queria orar, repetiu-se mais uma vez francamente. Não queria porque sabia que esse seria o remédio. Mas um remédio como a morfina que adormece qualquer espécie de dor. Como a morfina de que se precisa cada vez mais de maiores doses para senti-la. Não, ainda não estava tão esgotada que desejasse covardemente rezar em vez de descobrir a dor, de sofrê-la, de possuí-la integralmente para conhecer todos os seus mistérios. E mesmo se rezasse... Terminaria num convento, porque para sua fome quase toda a morfina seria pouca. E isto seria a degradação final, o vício. No entanto, por um caminho natural, se não buscasse um deus exterior terminaria por endeusar-se, por explorar sua própria dor, amando seu passado, buscando refúgio e calor em seus próprios pensamentos, então já nascidos com uma vontade de obra de arte e depois servindo de alimento velho nos períodos estéreis. Havia o perigo de se estabelecer no sofrimento e organizar-se dentro dele, o que seria um vício também e um calmante.
O que fazer então? O que fazer para interromper aquele caminho, conceder-se um intervalo entre ela e ela mesma, para mais tarde poder reencontrar-se sem perigo, nova e pura?
O que fazer?
O piano foi atacado deliberadamente em escalas fortes e uniformes. Exercícios, pensou. Exercícios... Sim, descobriu divertida... Por que não? Por que não tentar amar? Por que não tentar viver?

segunda-feira, 12 de setembro de 2011

O Passeio de Joana. Perto do Coração Selvagem. C. Lispector.

Embriagada pela biografia de Clarice, empreendi a caça dos livros dela aqui. Escolhi voltar com Perto do Coração Selvagem. Ponto de partida dela. Retorno meu.

"Assim como o espaço rodeado por quatro paredes tem um valor específico, provocado não tanto pelo fato de ser espaço mas pelo de estar rodeado por paredes. Otávio transformava-a em alguma coisa que não era ela mas ele mesmo e que Joana recebia por piedade de ambos, porque os dois eram incapazes de se libertar por amor, porque aceitava sucumbida o próprio medo de sofrer, sua incapacidade de conduzir-se além da fronteira da revolta. E também: como ligar-se a um homem senão permitindo que ele a aprisione? como impedir que ele desenvolva sobre seu corpo e sua alma suas quatro paredes? E havia um meio de ter as coisas sem que as coisas a possuíssem?"

No passeio de Joana...

domingo, 11 de setembro de 2011

Girassóis

De repente e não mais que de repente, cismei com o amarelo. E, como não podia deixar de ser, com os girassóis. Bateu uma vontade tremenda de fazer girar uma nuvem de letras ao redor de um girassol só para falar nele e lembrar o quanto é bonito e quanto me hipnotiza.
Espanta é o fato de eu nunca ter sido muito apaixonada por qualquer flor. Tudo bem, eu tenho afeto especial por orquídeas que, por acaso, também podem ser amarelas. E esse afeto pelas orquídeas é quase uma herança familiar. Minha avó amava as tais orquídeas e eu cresci com a minha mãe enfeitando a casa com diversos vasos delas. Entrar em um orquidário é quase um lanche da tarde em família. Mas comer flores não me apetece. Deixo para vocês.
Eu podia dizer aqui que os girassóis são plantas originárias da América do Norte e América Central cultivadas pelos povos indígenas ou que Francisco Pizarro encontrou diversos objetos incas e imagens moldadas em ouro que faziam referência aos girassóis como figura do Deus do Sol, mas não.
Prefiro ficar com as crendices de que os girassóis representam fama, sorte e felicidade. É mais poético e, sei lá, beira o esotérico.
Dispenso o mito da fama que os tais girassóis trariam porque eu não quero ser alvo de olhares curiosos. Por mais idiossincrático que possa ser, quero um girassol discreto. E sempre quis ser. Porro ser mais um girasso no meio de tantos que, muito menos que me importar, eu agradeço.
A sorte, admito, não é muito minha companheira, mas ela toca a campainha em momentos decisivos.
E a felicidade, não sei o que significa, mas sinto. As coisas simples da vida estão ao meu redor, por mais que não sejam simples para todos. E isso me basta. Acho que isso é a badalada felicidade. E se não for para os contrariados de espírito, para mim é. E, repito, isso me basta.
Agora só me resta enfeitar toda uma casa com girassóis nas janelas, nas mesas e nos cantos. Para continuar com a sorte escassa e chamar a felicidade abundante. Pintarei o rosto de cores amarelas, renovarei um guarda-roupa com uma série de blusas, calças e vestidos amarelos, dos mais variados tons. Até cansar. E ver que outra cor pode representar qualquer coisa que, para mim, vai ter gosto do que eu quiser, mais uma centena de vezes. Com um quê de misticismo ou esoterismo, sei lá.
E isso me faz lembrar as cores do Ano Novo. E isso me faz lembrar as cores de festas de casamento. E isso me faz lembrar as cores de roupinhas de bebê. E isso me faz lembrar as cores do arco-íris. E isso me faz lembrar o branco. O branco que mistura qualquer cor, mas que, por hoje, não bate a minha fascinação pelo amarelo do girassol.

Rebecca Sanches
13/05/2010


sábado, 10 de setembro de 2011

Deus é muito do infinito

Pergunto-me constantemente sobre fé assim como questiono a origem de tudo. Confesso que é uma questão que, volta e meia, atordoa meus pensamentos mais filosóficos. Entrevisto pessoas de confiança, vasculho bibliotecas inteiras, investigo maças. Ato contínuo, ininterrupto. A busca de Deus.
Seria mais fácil se eu conseguisse aceitar as fatalidades do mundo como obras da natureza e os destinos previstos pelas cartomantes. O amor seria mágico como o arranjo das estrelas. A dor seria algo inevitável. Mas eu busquei o peso do mundo: as minhas escolhas.
Talvez o fardo de a humanidade carregar a responsabilidade de suas decisões e tomar as rédeas de sua vida pelo livre-arbítrio seja tão culposo que a fuga seja a saída mais valiosa que os séculos construíram, possuindo diversas denominações pela filosofia a fora.
Consciente do caminho sem volta, optei. Cheguei à idade da razão. Sinto-me pisando nas areias da maioridade, em que me afasto da imagem humanizada de Deus - caricatura de um pai protetor como quem dá a mão ou abraça, consolando, tornando o caminho menos árduo para uma criança frágil.
Nessas areias, observo todas as ondas do mar. De alguma forma, o azul daquelas águas me conectam, intuitivamente, com o divino. Alguma coisa saiu de órbita. Minha racionalidade, sem a humanidade de Deus, não o consegue explicar, mas o sente. Ele é tudo. Mas também é nada. Na ausência de todas as coisas o sinto tão fortemente quanto em meio à natureza mais fecunda. Deus é muito do infinito.

Rebecca Sanches
10/09/2011

sexta-feira, 9 de setembro de 2011

Uma Arte, E. Bishop

Não é difícil dominar a arte de perder;
Tanta coisa parece preenchida pela intenção de ser perdida que sua perdida não é nenhum desastre.

Perca alguma coisa todo dia. Aceite a novela
das chaves perdidas, a hora desperdiçada.
Não é difícil dominar a arte de perder.

Exercite se perdendo mais, mais rápido:
lugares, nomes, e pra onde mesmo você ia viajar?
Nenhum desastre.

Perdi o relógio de minha mãe e, olha só,
de três casas que amava, a última e a penúltima se forma.
Não é difícil dominar a arte de perder.

Perdi duas cidades adoráveis e ainda alguns domínios,
Propriedades, dois rios, um continente.
Sinto sua falta, mas não foi nenhum desastre.

Até mesmo perder você (a voz gozada, o gesto que eu amava),
não posso mentir. É claro que não é tão difícil dominar a arte de perder,
apesar de parecer, pode escrever, desastre.

Maria Alice busca a felicidade

Maria Alice dormia. Seu quarto era amarelo, com móveis rústicos, feitos de madeira de lei. Os lençóis eram algodão, o travesseiro era conforto. Tinha, inclusive, companheiro na cama: um gato. Esse gato se chamava Amadeu e era tão felpudo que pouco se podia alcançar seu próprio corpo.
Amadeu gostava de dormir. Maria Alice dormia para buscar sua felicidade. Uma felicidade clandestina. Buscava encontrar nos sonhos a alegria que não alcançava quando estava com a retina desperta. Maria Alice era taciturna e trajava cinza. Volta e meia brincava com o branco, mas o dia tinha que estar ensolarado. Caso contrário, flertava com o preto.
Maria Alice era monocromática. Mas agora ela dormia. Descobriu quando menina que quando adormecia enxergava muitas cores, todas elas, um arco-íris inteiro. Muitas vezes sonhava vários filmes coloridos e podia ser qualquer Peter Pan, Sininho ou Capitão Gancho. Nunca era Maria Alice.
Ocorre que Maria Alice não queria ser Maria Alice, mas assim era quando despertava. Voltava para suas roupas acizentadas. E esse mundo todo cru não conseguia conviver com ela e vice-versa e dormia, dormia. Seu quarto amarelo a chamava. Passou a dormir cada vez mais. Das oito horas diárias, passou às doze, depois às quinze. Dividia toda essa aventura com Amadeu, o gato. Amadeu não queria outra vida. Gato preguiçoso. Felpudo e preguiçoso.
Chegou um dia, porém, que Maria Alice não acordou. De tão imersa em seus sonhos, em suas cores diferenciadas, em suas criações fantásticas, Maria Alice não abriu mais os olhos. Queria uma felicidade eterna. Acreditou nela. Aqueles olhos pretos não veriam mais o céu ou sentiria a garoa da tarde cair. Sequer sentiria aquela doçura de Amadeu novamente. Maria Alice estava lá, aprisionada em seus sonhos. Nunca voltou. Amadeu foi adotado por Emília, uma menina de cinco anos. Continuou preguiçoso e felpudo. Sobretudo preguiçoso.
Maria Alice decerto não voltou, mas descobriu que até mesmo nos sonhos a felicidade não assina contrato com a eternidade.


Rebecca Sanches
09/09/2011

quinta-feira, 8 de setembro de 2011

Biutiful

Sei que muito já se falou sobre Biutiful, o filme badalado que rendeu prêmios a Javier Bardem. Foi de tanto ouvir falar que eu corri atrás. Bendita maratona. Trabalho brilhante do Javier. Diretor incrível. Tudo muito denso. Do jeito que eu gosto.
A temática do filme envolve morte. Morte coletiva, individual, em vida. Morte.
Sem espoliar o filme, o mais marcante para mim foi quando o pai, temendo pelo destino dos seus filhos após a sua morte iminente, tem a resposta da sua amiga: "O universo cuidará deles."
Acho que a parte mais leve do filme todo é o seu título, já que o pobre Javier ensina errado como se escreve beautiful para sua filha nas lições de inglês.

Talvez eu tenha que passar a acreditar que o universo cuide de muito mais do que eu imagino.